EUA-1984: Ghinzani ignora calor e coloca Osella no top 5

A bordo de um Osella, Piercarlo Ghinzani fez o que parecia impossível: ser quinto em Dallas

A bordo de um Osella, Piercarlo Ghinzani fez o que parecia impossível: ser quinto em Dallas

A história da Fórmula 1 é repleta de situações pitorescas. E algumas delas são motivadas pelo interesse financeiro. Um exemplo foi a promoção do GP dos Estados Unidos de 1984. Para a corrida acontecer, houve um polpudo investimento de magnatas texanos ligados a petrolíferas. Eles queriam uma prova em Dallas. Só havia um porém: não existia um autódromo na cidade. A solução encontrada foi improvisar um circuito de rua. Tudo certo? Pelo contrário. A etapa estava programada para ocorrer em 8 de julho, auge do verão ianque. A pista provisória e o clima insuportável transformaram o GP norte-americano num tremendo fiasco. O asfalto simplesmente derreteu – a temperatura da pista atingiu mais de 60°C – obrigando a prova a ser encurtada. Mesmo assim, os pilotos sofreram para completar o GP, uma vez que encararam sensação térmica de quase 50°C.

Em meio a esse cenário catastrófico, a etapa texana reservou à categoria máxima do automobilismo um momento único: a bordo de um Osella, Piercarlo Ghinzani chegou em quinto lugar em Dallas. Pela primeira e única vez, o piloto pontuou em sua trajetória na Fórmula 1. E esse momento aconteceu, sobretudo, graças ao caos propagado em Dallas. Por sobreviver a todos os percalços da prova, o italiano merece os louros do feito. Uma façanha inédita, e nunca mais conquistada em sua carreira.

Piercarlo pilotou por muitos anos na Fórmula 3, sagrando-se campeão italiano e europeu

Piercarlo pilotou por muitos anos na Fórmula 3, sagrando-se campeão italiano e europeu

Nascido em 16 de janeiro de 1952, em Riviera D’Adda, na Lombardia, Piercarlo começou nos monopostos aos 18 anos. Em 1970, participou da Fórmula Ford 1600 Italiana. Na temporada seguinte, ingressou na Fórmula Itália. Mas seria no ano de 1972 que Ghinzani daria seu passo decisivo no automobilismo, quando passou a competir na Fórmula 3 Italiana. Nas primeiras três temporadas, não obteve grandes resultados. A partir de 1975, disputou paralelamente os campeonatos da F3 Italiana e da F3 Europeia.

O resultado de competir em duas competições simultâneas viria em 1976, quando obteve o vice-campeonato italiano e o sexto lugar no Europeu. Em 1977, Piercarlo participou exclusivamente da disputa da Fórmula 3 Europeia, e obteve o título continental com três vitórias. Após a conquista, o passo natural foi a Fórmula 2, em 1978, mas seus resultados foram pífios. Em 1979, retornou para a Fórmula 3 Italiana, sagrando-se campeão no duelo contra Michele Alboreto.

A primeira experiência de Ghinzani na F1 ocorreu numa Osella no GP da Bélgica de 1981.

A primeira experiência de Ghinzani na F1 ocorreu numa Osella no GP da Bélgica de 1981

Depois de 10 anos no automobilismo e sem um rumo definitivo na carreira, Ghinzani passou todo o ano de 1980 e o início de 1981 perambulando por diversas categorias de protótipos. Em maio de 1981, já com 29 anos, Piercarlo receberia seu primeiro convite para correr na Fórmula 1. E ele seria dado por Enzo Osella, dono da Osella, uma escuderia que tinha iniciado sua trajetória na categoria máxima do automobilismo em 1980 e que lutava para se classificar para os grandes prêmios. O time precisava substituir o argentino Miguel Ángel Guerra, lesionado após acidente durante o fim de semana do GP de San Marino, e convidou o italiano para seu lugar.

Ghinzani estreou na Fórmula 1 no GP da Bélgica de 1981, em Zolder. No cockpit da Osella, o italiano largou em 24º e terminou em 13º, a quatro voltas do vencedor Carlos Reutemann (Williams). Depois, tentou se classificar para o GP de Mônaco, mas não obteve êxito. Após a etapa do Principado, deixou a escuderia. Retornou aos protótipos, onde competiu entre 1981 e 1982. Uma nova oportunidade na Fórmula 1 só viria em 1983. Novamente, com a Osella. Em 15 etapas do Mundial daquele ano, Piercarlo se classificou para sete, e viu a bandeira quadriculada apenas uma vez – foi 11º no GP da Áustria, em Zeltweg.

Depois de muitos problemas em 1983, Ghinzani viu melhorias na Osella, que passou a contar com motor Alfa Romeo para 1984

Ghinzani viu melhorias na Osella, que passou a contar com motor Alfa Romeo para 1984

Participar de toda a temporada de 1983 foi crucial para Piercarlo se manter na Fórmula 1 em 1984. Enzo Osella confiava na fidelidade do italiano, e apostou mais uma vez no piloto. Em um Osella com motor Alfa Romeo, Ghinzani ficou de fora de dois GPs (não se classificou para a etapa de San Marino, em Imola, e não participou da corrida da África do Sul, em Kyalami, por acidente que feriu sua mão). Nas oito primeiras provas do Mundial de 1984, o italiano da Osella correu em seis. Abandonou quatro, e concluiu dois – foi 12º no GP da França, em Dijon, e 7º no conturbado GP de Mônaco.

Ghinzani desembarcou em Dallas com o simples intuito de terminar a etapa norte-americana. Todavia, sabia que era uma das missões das mais improváveis, uma vez que seu Osella era um carro nada confiável. E encarar o fortíssimo calor texano desanimava a escuderia de Enzo Osella. Os carros foram para a pista instalada no Fair Park na quinta-feira, a fim de realizar o reconhecimento do traçado. Já ali, os primeiros problemas: pedaços de asfalto ou saíam em blocos, ou derretiam com o clima extremo.

No forte calor de Dallas, Ghinzani levou a Osella a um satisfatório 18º lugar no grid

No forte calor de Dallas, Ghinzani levou a Osella a um satisfatório 18º lugar no grid

Na sexta, sob o sol de 35°C, Piercarlo surpreendeu ao carregar seu bólido ao 18º melhor tempo, com 1m41s176 – a 4s135 de Nigel Mansell (Lotus), o mais rápido do dia. No sábado, a condição climática pioraria: a temperatura atingiu 42°C, a mais alta já registrada num fim de semana de disputas. Os pilotos não baixaram seus tempos de sexta, e Ghinzani assegurou o 18º lugar, o melhor grid da Osella naquela temporada. Após o fim do treino, ocorreu no circuito uma etapa da Can-Am, uma categoria de protótipos, o que acabou por destruir de vez o que restava da pista. Isso atrapalhou de vez a realização da prova.

Para tentar minimizar a deterioração do asfalto por conta do calor, a organização tratou de antecipar o warm up de domingo para as 7 horas (horário de Dallas). Os pilotos chiaram. Jacques Lafitte (Williams) chegou ao circuito de pijama. Mas o pior ainda estava por vir: ao ver o real estado da pista, a direção de prova cancelou o treino de aquecimento para tentar consertar o asfalto. Os reparos foram feitos até 10h30 (de Dallas), meia hora antes da largada. As ações surtiriam efeito? Ninguém sabia. A dupla da McLaren, Niki Lauda e Alain Prost, clamou por um boicote dos pilotos, mas foi convencida a correr pelo grupo liderado por Keke Rosberg (Williams).

Largada do GP dos EUA de 1984: foi a primeira pole de Nigel Mansell (Lotus)

Largada do GP dos EUA de 1984 foi antecipada para evitar o calor: Ghinzani superou três na primeira volta

A corrida

A fim de evitar o ápice do calor texano, a largada para o GP dos Estados Unidos de 1984 foi dada às 11 horas locais. Além disso, a prova foi encurtada em 10 voltas – das 78 previstas, iriam acontecer 68. Apesar das ações preventivas, o calor deu o ar de sua graça. A temperatura atingia os 40ºC quando a luz verde foi acionada. Ghinzani largou bem e superou Johnny Cecotto (Toleman), Manfred Winkelhock (ATS) e Riccardo Patrese (Alfa Romeo), completando a volta 1 em 15º. Na volta 2, o italiano da Osella alcançou o 14º lugar depois de se aproveitar da rodada de Ayrton Senna (Toleman), que era o 4º colocado e que caiu para o fim do pelotão.

Piercarlo mantinha o ritmo, enquanto os adversários eram derrotados pela pista. Num espaço de duas voltas, ele ganhou duas posições graças aos abandonos de Stefan Bellof (Tyrrell), na volta 10, e Derek Warwick (Renault), na volta 11. O piloto da Osella permaneceu em 12º até a volta 16, quando um acidente tirou Andrea de Cesaris (Ligier) da corrida, fazendo Ghinzani subir para o 11º lugar. A ascensão do italiano prosseguiu após a parada de boxes de dois compatriotas: Corrado Fabi (Brabham), na volta 20, e Michele Alboreto (Ferrari), na 21. Pronto: estava no top 10.

Ghinzani resistiu bravamente ao calor e aos problemas na pista improvisada de Dallas

Ghinzani resistiu bravamente ao calor e aos problemas na pista improvisada de Dallas

Ghinzani resistiu o quanto pôde com seus pneus Pirelli. Mas o calor acabou fazendo com que o italiano fosse aos boxes na na volta 31. No retorno à pista, o italiano da Osella estava na 12ª posição. Ali permaneceu até a volta 45, quando teve início a prova de resistência em Dallas. Com a alta temperatura, os equipamentos acabaram deixando os pilotos na mão. com o asfalto em frangalhos, diversos acidentes passaram a acontecer. E foi a combinação das duas situações que levou Piercarlo à zona de pontos.

Na volta 46, Nelson Piquet (Brabham) abandonou com problemas no acelerador de seu carro, colocando o piloto da Osella em 11º. Ali seguiu até a volta 55, quando Alboreto deu início a uma sequência impressionante de acidentes no mesmo ponto. Depois do italiano da Ferrari, Thierry Boutsen (Arrows), na volta 55, Prost, na 56, e Lauda, na 60, bateram no muro. Ghinzani ainda ganharia uma posição de Corrado Fabi, fundamental para colocá-lo no top 6. A partir daí, Piercarlo passou a levar seu Osella com cuidado até a bandeirada.

Desmaio de Mansell na última volta rendeu o quinto lugar a Piercarlo: ápice do italiano na Fórmula 1

Desmaio de Mansell na última volta rendeu o quinto lugar a Piercarlo: ápice do italiano na Fórmula 1

Na última volta, ainda viu Mansell sofrer com pane seca, o que o fez alcançar o quinto lugar. Rosberg ficou com a vitória, seguido por René Arnoux (Ferrari), Elio de Angelis (Lotus) e Jacques Lafitte (Williams). Mas a grande festa do dia foi protagonizada por Ghinzani, que deixou emocionado Enzo Osella. “Ainda me lembro da expressão de satisfação no rosto de Enzo. Acabar em quinto lugar foi um grande feito. Foi como ganhar a corrida. O resultado permitiu que a equipe tivesse dinheiro suficiente para terminar o restante do campeonato”, destacou Piercarlo, em 2013, para Richard Bailey, do site RichardsF1, da Austrália.

O italiano recordou do cenário caótico para a disputa de um grande prêmio. “Lembro que a temperatura da pista alcançou mais de 60°C, e a sensação térmica se aproximou de 50°C, era inacreditável. A corrida em Dallas foi mais do que um GP normal. Numa prova comum, o sucesso é notado pela força e desempenho dos carros. Naquele dia, foram testadas a resistência e a força dos pilotos no calor tórrido. Minha resistência foi maior do que a de muitos outros pilotos, e eu pude lidar com o calor extremo sem ficar cansado. Não cometi nenhum erro, o que me permitiu terminar a corrida nos pontos”, celebrou Ghinzani.

Foi a primeira e única vez que Piercarlo pontuou. Mas diante de tamanhas adversidades, seus dois únicos pontos na carreira renderam belíssimas histórias para contar…

Sobre contosdaf1

Desde 1981, um amante de automobilismo. E veio desde o registro, quando no cartório seu pai foi questionado se queria colocar o nome "Willians" no garoto. "Esse é o nome de uma escuderia. Pode dar problema para ele no futuro", disse a escrivã. Hoje em dia, a equipe Williams voltou a se destacar, enquanto o menino segue o destino. Jornalista, nascido em Santos, cobriu os GPs do Brasil de 2005 a 2009 em Interlagos pelo jornal A Tribuna. Acompanha a Fórmula 1 religiosamente desde 1986. Pretende fazer isso até seus últimos dias. Afinal, o faz desde o primeiro.
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